Se tivesse uma moeda por cada vez que me recordam de algo que já fiz bem e não faço mais, estaria agora a construir um castelo nas nuvens, num qualquer país feito de outras tantas coisas conquistadas, perdidas ou que podem nunca chegar.
2020: uma distopia digna do imaginário de Saramago desce à Terra e passamos a viver assombrados por uma ameaça fantasma. Um tempo de reclusão, de paciência e de teste, mais que de desafio.
Esse está bem presente ainda em casa, quando acordamos de madrugada e o iminente fracasso que é a nossa pessoa volta a pesar sobre a nossa consciência na forma de insónias, calafrios, respiração alterada e pensamento acelerado.
“Isso são outros quinhentos”, logo penso nisso quando tiver tempo – felizmente, nunca o há e assim não preciso de me confrontar com as dúvidas existenciais que teimam fugir para a superfície, como gotas de suor naquela camisa nova, no momento mais inoportuno de um primeiro encontro.
Pandemia instalada e o trabalho mantém-se, mas fico com mais tempo, em casa, para fazer o que gosto, o que antes não conseguia e o que descubro existir para fazer. E de repente, parece-me, não sou tão básica como uma folha de papel, descubro e redescubro mil outras dimensões neste metro e meio de 25 anos.
Encho-me de sons quando toco piano, de cor quando pinto cadernos, de movimento quando danço, de palavras quando leio, de sabores quando cozinho.
Mas ainda mais de vazio e de silêncio quando calo a voz e paro o corpo.
Afinal, quem raio é a Joana?, ouço algures dentro de mim. E baixinho escuto um eco, como uma caverna que estala no recôndito da alma, ainda por explorar.
Eu sei lá responder a isso.
Na azáfama do dia a dia, “nem tempo há para me coçar”, queixava-me nesses tempos pré apocalípticos, quase vida anterior, quanto mais para dar atenção à pessoa que habita este T0, mal transformado em T1 onde quero enfiar uma equipa e suplentes, um para cada dia do ano caso algum não sirva bem a personagem.
Querem algo mais desafiante que reprimir o confronto de gentes que vive aqui diariamente, e que finalmente se faz ouvir?
É que em 2000 eu quis ser escritora, em 2010 disseram-me que tinha de escolher uma carreira “a sério” e em 2020 atiram-me com um “tinhas tanto jeito para escrever, porque é que nunca mais escreveste?”. Mas pois, se mataram a vaca pelo seu cachaço e agora descobrem querer o lombo… é preciso refazer o animal e não sei se ele tem, ainda, todos os cortes que vos apetece para o jantar.
Talvez eu não seja nada do que já quis ser ou do que poderia ter sido, mas não pode estar a correr assim tão mal. Porque tenho um bom trabalho e projetos que me ocupam todos os dias.
A minha alma é que, descubro agora, se sente sem qualquer emprego.
(continua)